quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Reflexões #16 - Gerir Emoções





Da última vez que escrevi, apesar de ser tudo sentido, deixei-me levar um bocado pela frustração, da qual às vezes também precisamos. Digo isto porque acredito que temos, uns mais do que outros, a necessidade intrínseca de processar as nossas emoções, de as digerir, e esse processo nem sempre é fácil, demora o seu tempo. Pelo menos é o acontece comigo, quando, por vezes, o que sinto é tão forte e excessivo que preciso de um determinado tempo e espaço para processar, ou seja, parar para respirar e pensar nas minhas hipóteses de escolha. Nos últimos tempos apercebi-me de que o mais importante é acreditarmos na concretização dos nossos objectivos; para tal temos de confiar nas nossas capacidades e não desistirmos nunca daquilo que realmente nos realiza. Quer dizer, se pensarmos bem, a maioria das pessoas passa metade da vida à procura daquilo de que realmente gosta e são muito poucos aqueles que, antes dos 20 anos, sabem concretamente o que querem fazer na vida.

Eu sempre disse que queria ser escritora e preparei-me o melhor que podia, sempre consciente de que no nosso país isso quase não é considerado uma profissão, é encarado somente como vocação, o que é uma ideia errada daquilo que é ser escritor. Todavia, não é isso que me vai impedir de chegar onde quero, até porque aprendi desde cedo a não desistir. Ninguém está à espera que a vida seja um mar de rosas (a não ser que nunca ultrapassem a fase da ingenuidade, claro), mas era muito melhor se não o país não estivesse a ser gerido sob um gigantesco conflito de interesses e cada um tivesse a hipótese (e a sorte) de trabalhar naquilo que gosta, de decidir livremente como investir o seu tempo; mas no entanto, não passamos de um povo cobarde e resignado que não se esforça para mudar a situação. Porém, se houver alguém que acredite que é possível, a mudança acontece, mesmo que seja a coisa mais ínfima e insignificante, pelo menos é um principio e é o quanto basta para que o inesperado aconteça quando menos se espera.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O Feitiço da Índia, Miguel Real





Após a leitura do romance A Voz da Terra, fiquei curiosa sobre este autor, cuja escrita se assemelha à de Saramago pelo facto de não usar marcas de discurso directo e parágrafos muito longos que nos obrigam a lê-los de um fôlego. Assim, descobri por acaso este romance (O Feitiço da Índia) numa das minhas passagens pela Feira do Livro de Lisboa, que me despertou a atenção não só pelo título e colorido da capa, mas também pelo enredo intrincado. A narrativa desenrola-se através de flashfowards, culminando numa tragédia família imprevista, mas que talvez até já estivesse eminente, dada a repetição da história geracional de um português que se deslumbra de amores por uma indiana e quebra as regras culturais em nome desse amor. Por outro lado,  este romance também retrata a crueza de alguns dos episódios mais importantes da nossa História, dos quais temos mais ou menos consciência de que não foram totalmente pacíficos. Numa prosa bastante fluída e fácil de entender, este romance é, em suma, uma leitura muito interessante dentro do género histórico.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Reflexões #15 - Falência Social





Cada vez me desiludo mais com esta sociedade desagregada que impele cada vez mais no sentido do egocentrismo e do narcisismo; esta sociedade está a desintegrar-se sucessivamente ao insistir em manter ideais desacreditados e obsoletos, e ao valorizar apenas aquelas acções que empobrecem o carácter das pessoas ao demonstrarem uma soberba falta de escrúpulos. A sociedade que designamos por moderna é a maior falsidade em que vivemos, porque tudo nela se esfuma com a rapidez do pensamento. A política de hoje é apenas uma acumular de falsas promessas, atiradas aos crédulos somente para beneficio dos corruptos e gananciosos que vão enchendo os bolsos à custa daqueles que passam a vida a trabalhar honestamente. O povinho vai-se acomodando a esta maré viciada, como se achasse graça a este jogo do toca e foge, que na realidade não tem graça nenhuma, só o reduz mais à insignificância.

Esta sociedade só nos desgasta, falha-nos constantemente com as oportunidades que deviam ser nossas, passando-as a outros, e consome-nos a energia vital, qual sanguessuga a sugar o sangue! Se continuar assim o que será, pois, dos sonhadores, dos artistas, dos inventores, dos artesãos, dos escritores e todos os outros nobres constituintes da nossa cultura? Só sei que esta degradação me revolta profundamente e não me posso quedar inerte a assistir a isto, esta cena deprimente; tenho que  continuar a lutar para trazer de volta os valores culturais da literatura e das outras artes. É lamentável que um país de espírito e carácter histórico tão ricos se deteriore culturalmente com tamanha facilidade e este cenário contínuo dificulta a crença de que ainda se pode semear algo de bom nesta sociedade miserável que procura destruir-nos os sonhos. Cabe a cada um de nós lutar para manter o seu sonho e é o que farei, sempre, porque me recuso a desistir da verdadeira felicidade!

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Pedaços de Escrita #59





A luz pálida da madrugada dançava-lhe na face serena, profundamente adormecida. Do lado de fora, no topo da cerejeira em flor, os pintassilgos saudavam o novo dia numa chilreada melódica e compassada. Ao longe, um cão ladrou e na floresta ecoaram as primeiras machadadas dos lenhadores. Então o sol surgiu por cima da cumeada que escudava aquele pequeno vale dos olhares curiosos, espreitou pelas portadas sem pedir licença e encheu o quarto de fios de luz, despertando-a gentilmente. Mas ela não queria acordar; o quarto estava frio e a cama quente, agradável e convidativa!

Porém, a mãe não tardou a bater na porta para a acordar:
- Levanta-te, Joana! Há muito para fazer na herdade!

Joana bufou, exasperada. Havia sempre muito para fazer segundo a mãe e, se não houvesse, a mãe fazia com que houvesse (ou inventava, na opinião da filha). Saltou da cama, lavou-se, vestiu-se e desceu os degraus de madeira dois a dois. Sendo a mais nova de seis irmãos e a única rapariga, tinha uma certa vantagem em realizar as tarefas mais leves no que à casa dizia respeito, embora não se importasse de sujar as mãos. Contudo, era Inverno e não lhe apetecia nada ir lá para fora para o frio. Tomou o pequeno-almoço, enfiou-se no casacão grosso que pertencera ao irmão mais velho, nas luvas e no gorro e lá foi ajudar os irmãos, o Zeca e o Simão, a limpar o caminho principal.

Andaram grande parte do dia de um lado para o outro e quando deram as tarefas por terminadas, refugiram-se na sala, em frente à lareira, a saborear um chocolate quente e a conversar sobre o quanto a sua vida havia mudado e ainda iria mudar. Dinis, o irmão mais velho, saíra de casa havia cinco anos para ir para a faculdade, terminara o curso nesse ano e casara; seguiram-se os gémeos dois anos depois, os quais deviam estar a aparecer para a pausa semestral. Ter-se-ia seguido o Simão, mas este preferira ficar na herdade; o rapaz tinha alma de camponês, era ali que se sentia bem, apesar de ser bastante culto e perspicaz. O Zeca talvez fosse no ano seguinte, ainda não decidira, e Joana tinha a certeza de que, tal como Simão, queria ficar na herdade.

Talvez fosse por medo ou por hábito, mas o seu mundo cingia-se àquele vale, onde podia respirar, sentir-se inteira e livre. Numa cidade não teria nada disso, para além de que ali, no lugar que a vira nascer e crescer, poderia sempre dar aso à imaginação e escrever sempre que quisesse; o mundo podia conhecê-la através das suas palavras. Por seu turno, Joana conhecia do mundo o suficiente para não querer mergulhar nele de cabeça. 

Pedaços de Escrita #58





Perdera o rumo, desnorteara-se por completo quando se descobrira sozinho no mundo. Não tinha para onde ir, nenhuma indicação do que fazer a seguir. Todavia, tinha a certeza de que, fosse como fosse, deveria seguir em frente e recomeçar. Tinha medo, um medo irracional de falhar... Ela rir-se-ia dele se ali estivesse naquele momento; depois dir-lhe-ia com brandura:

- A coragem não é a ausência do medo; a coragem é aceitar que esse medo existe e, ainda assim, fazer-lhe frente!

Ele sabia que assim era, mas não conseguia deixar de pensar que se não fosse o seu medo, talvez agora ela ali estivesse ao seu lado, em vez de ter embarcado naquela viagem temeraria sozinha. Ou talvez tivesse ido com ela; pelo menos saberia se ela estava bem. Mas não fora isso que acontecera: ele assustara-se e ela partira, deixando-o entregue ao silêncio vazio da casa antiga, recheada de histórias perdidas no pó do tempo.

Sair dali era a única coisa a fazer, restava-lhe descobrir para onde. Estudou o mapa. Ela sempre se deslumbrara com o Norte, talvez devesse começar por aí. Quedou-se por algumas horas à frente do mapa, traçando uma rota, até que se decidiu a dobrá-lo e empacotar alguns haveres essenciais para se fazer à estrada. Saiu para o ar fresco e límpido da madrugada de saco ao ombro, atirando-o para o banco do passageiro, e olhou para a casa uma última vez.

E partiu sem pensar duas vezes, porque o amor, quando é de verdade, faz-nos conquistar os maiores obstáculos e superar-nos a nós mesmos, ainda que nunca nos dê garantias de que veio para ficar. Porque quando se ama há que fazê-lo de coração aberto e mente serena, ir à luta e aproveitar as oportunidades que o amor nos dá para sermos felizes.